quinta-feira, 29 de março de 2012

A primeira pedra

por Luís Fernando Veríssimo

E os fariseus trouxeram a Jesus uma mulher apanhada em adultério, e perguntaram a Jesus se ela não deveria ser apedrejada até a morte, como mandava a lei de Moisés. E disse Jesus: aquele entre vós que estiver sem pecado que atire a primeira pedra. E a vida da mulher foi poupada, pois nenhum dos seus acusadores era sem pecado. Assim está na Bíblia, evangelho de São João 8, 1 a 11.

Mas imagine que a Bíblia não tenha contado toda a história. Tudo o que realmente aconteceu naquela manhã, no Monte das Oliveiras. Na versão completa do episódio, um dos fariseus, depois de ouvir a frase de Jesus, pega uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a mulher, dizendo: “Eu estou sem pecado!”

— Pera lá — diz Jesus, segurando o seu braço. — Você é um adúltero conhecido. Larga a pedra.

— Ah. Pensei que adultério só fosse pecado para as mulheres — diz o fariseu, largando a pedra.

Outro fariseu junta uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a mulher, gritando: “Nunca cometi adultério, sou puro como um cordeiro recém-nascido!”

— Falando em cordeiro — diz Jesus, segurando o seu braço também — e aquele rebanho que você foi encarregado de trazer para o templo, mas no caminho desviou dez por cento para o seu próprio rebanho?

— Nunca ficou provado nada! — protesta o fariseu.

— Mas eu sei — diz Jesus. — Larga a pedra.

Um terceiro fariseu pega uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a adúltera, dizendo: “Não só não sou corrupto como sempre combati a corrupção. Fui eu que denunciei o escândalo da propina paga mensalmente a sacerdotes para apoiar os senhores do templo.”

— Mas foste tu o primeiro a receber propina — diz Jesus, segurando seu braço.

— No meu caso foi para melhor combater a corrupção!

— Larga a pedra.

Um quarto fariseu junta uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a mulher, dizendo: “Não tenho pecados, nem da carne, nem de cupidez ou ganância!”

— Ah, é? — diz Jesus, segurando o seu braço. — E aquela viúva que exploravas, tirando-lhe todo o dinheiro?

— Mas isto foi há muito tempo, e a mulher já morreu.

— Larga a pedra, vai.

E quando os fariseus se afastam, um discípulo pergunta a Jesus:

— Mestre, que lição podemos tirar deste episódio?

— Evitem a hipocrisia e o moralismo relativo — diz Jesus.

E, pensando um pouco mais adiante:

— E, se possível, a política partidária.


Luís Fernando Veríssimo

quarta-feira, 28 de março de 2012

Papáverum Millôr

[Millôr Fernandes]

Enterrem meu corpo em qualquer lugar.
Que não seja, porém, um cemitério.
De preferência, mata;
Na Gávea, na Tijuca, em Jacarepaguá.
Na tumba, em letras fundas,
Que o tempo não destrua,
Meu nome gravado claramente.
De modo que, um dia,
Um casal desgarrado
Em busca de sossego
Ou de saciedade solitária,
Me descubra entre folhas,
Detritos vegetais,
Cheiros de bichos mortos.
(Como eu).
E, como uma longa árvore desgalhada
Levantou um pouco a lage do meu túmulo
Com a raiz poderosa,
Haja a vaga impressão
De que não estou na morada.

Não sairei, prometo.
Estarei fenecendo normalmente
Em meu canteiro final.
E o casal repetirá meu nome,
Sem saber quem eu fui,
E se irá embora,
Preso à angústia infinita
Do ser e do não ser.
Ficarei entre ratos, lagartos,
Sol e chuva ocasionais,
Este sim, imortais.
Até que, um dia, de mim caia a semente
De onde há de brotar a flor
Que eu peço que se chame
Papáverum Millôr.

01/06/1962

(Extraído do livro Papáverum Millôr. Círculo do Livro, 1974)

sexta-feira, 23 de março de 2012

Perdão, Florianópolis

Querida Florianópolis, Feliz Aniversário pra ti!!!

E por favor, perdoa-nos pela nossa incompetência em escolher quem te administra.

Perdoa-nos por te colocar nas mãos de pessoas que estão te destruindo ao invés de te cuidar.

Perdoa-nos pelo impiedoso ataque às tuas belezas naturais.

Perdoa-nos pela sujeira que jogamos em tuas lindas ruas.

Perdoa-nos pelo descuido de tuas lagoas e teus mares.

Perdoa-nos pela inescrupulosa invasão de arranha-céus em teus bairros e vilas.

Perdoa-nos pela exploração das pessoas simples que acomodas em teu colo.

Perdoa-nos pela obscena negociata de tua terra, trocada por uma moeda verde pelos poderosos que hoje dissimuladamente te cantam "parabéns pra você".

Querida Florianópolis, neste seu aniversário, aqui vai o nosso pedido de perdão, e nossa esperança de dias melhores...

(João David Mendonça)